(duros) contrastes

Juntar o salgado ao doce. O preto ao branco. O mar à montanha. O clássico ao moderno. O fado ao pop. O exercício à preguiça. O sol aos dias de chuva. Tudo bem. Afinal, não fosse isso, nunca teríamos visto o arco-íris.

Mas são precisamente essas cores, melhor dizendo: a falta delas, que me reviram o estômago e me deixam um nó na garganta.

Design sem nome (1)

Caminhar nas ruas de Milão, e de qualquer grande cidade, sobretudo à noite, é uma verdadeira dor de alma. O calor, as luzes, os brilhos e a excentricidade das Prada, Louis Vuitton, Valentino e Dior desta vida contrastam com o ar gélido, a escuridão, os cobertores velhos e rasgados e a falta de tudo dos sem abrigo desta vida.

Corta o coração ver jovens de 20 e poucos anos a dormir no chão, sob as luzes de um quiosque, que vende um íman possivelmente pelo mesmo valor de todas as refeições que conseguem fazer no dia. Mas não só de jovens se enchem as ruas. Esta solidão envergonhada arrasta consigo novos, velhos e doentes. Homens e mulheres.

Muitos dirão que estes seres chegaram a esta situação porque não souberam gerir a vida. Porque gastaram demais, meteram-se em vícios e foram desordeiros. E então? Estas criaturas são gente. E merecem viver como tal. E nós não somos gente se não acreditarmos que as nossas atitudes podem fazer a diferença. Não podemos mudar o mundo. Mas caramba! Deixemo-nos de palavras e vamos lutar pela vida e pelo mundo de alguém. Que ainda é gente!

Patrícia Silva

No sacudir da carruagem

As janelas estão sujas e a paisagem passa acelerada. O verde das árvores e dos campos, pincelado com as cores dos animais que neles pastam, com as casas e os barracos que, de vez em quando, lá aparecem. As linhas enferrujadas dos carris e o barulho da locomotiva são pano de fundo deste cenário.

Cá dentro, está quente. À minha frente duas senhoras com os seus sessenta e poucos anos falam das modernices que são as redes sociais nos dias de hoje. Mas têm o Facebook aberto e não param de comentar as publicações das amigas. Nos bancos ao lado, um casal trouxe a merenda e estendeu uma toalha de banho sobre as pernas, duas horas depois ainda não consegui perceber para que serve. Ao meu lado, um jovem que ainda não tirou os olhos da série que está a ver, colado ao telemóvel desde que eu me sentei. Atrás de mim, o choro esporádico de uma criança, deve ter a mesma vontade de chegar que eu. Não fossem as cinco espanholas sentadas mais lá atrás, que falam alto do restaurante que marcaram para o jantar e do que vão visitar nos próximos dias em Lisboa, até se pode dizer que está a ser uma viagem bem tranquila.

Pelas minhas contas, deixei de fazer esta viagem há quase sete anos. Seis horas de comboio semanais são bastante produtivas nos primeiros meses, mas rapidamente percebemos que “está tudo certo” se nos deixarmos dormir um bocadinho… e os bocadinhos transformam-se praticamente em viagens inteiras a dormir. As rotinas dão-nos segurança mas também nos tiram o entusiasmo de aproveitar as coisas como se fosse, lá está, a primeira vez que as fazemos.

Ao fundo, o sol já se põe. Mas isso não tranquiliza ninguém. A agitação aumenta de cada vez que o comboio para. E todos querem ser os primeiros a sair.

Design sem nome

“Os primeiros”… a aparente certeza que nos incutem desde pequenos de que temos de ser os primeiros para termos um bom emprego, para ganharmos mais, para termos os melhores amigos, para vestirmos as melhores roupas, para publicarmos na internet as fotos das melhores viagens… Os primeiros, sempre mais e mais e mais.

Dizem que, se a vida nos der limões, devemos fazer limonada. Somos realmente “os primeiros” quando fazemos limonada ou sangria ou limoncello com os limões que esta vida nos dá. Somos “os primeiros” quando não nos contentamos com isso, saímos da nossa zona de conforto e, se for preciso, vamos à árvore buscar ainda mais limões. Somos “os primeiros” quando aprendemos a adoçar os limões desta vida… com tartes de limão por exemplo. Somos “os primeiros” quando nos habituamos até à acidez do limão e passamos a gostar. E somos também “os primeiros” se, num dia qualquer, nos fartarmos dos limões e formos atrás das laranjas, dos pêssegos e das maçãs. Das árvores todas, das saladas de fruta. Porra! Somos e seremos sempre “os primeiros” todas as vezes que corrermos atrás da felicidade. Em qualquer sítio, a fazer qualquer coisa, com qualquer fruta. Somos “os primeiros” da nossa vida.

Ponto.

Patrícia Silva

(re)nascer

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Sinto que passou uma vida desde a última vez que peguei numa caneta e tentei preencher uma folha em branco. As mãos trémulas, a boca seca apenas humedecida pelo chá quente com cheiro a maçã e canela, o ambiente acolhedor, a música cantada em português do Brasil, os namorados sentados nas mesas ao lado, tábuas de madeira, plantas verdes e o mar… ai o mar! Mentia se dissesse que está bonito com os seus tons azuis celestes e cristalinos. Não está. Está como o céu, cinzento e triste. E como eu…

Pela primeira vez em muito tempo saí sozinha num dia escuro. Senti a areia nos pés, a água gélida e as primeiras gotas de chuva. E agora, no calor deste café, aqui estou com as mãos trémulas e o coração inseguro a tentar ganhar coragem para pegar na caneta e escrever.

“Melhor errar amando do que aceitar chorando”, já repararam que tudo o que é cantado em brasileiro soa tão bem? Mas sim, passados todos estes anos chegou a hora de errar, amando aquilo que faço. Porque, às vezes (muitas vezes) é preciso morrer para voltar a nascer.

Leve.

Patrícia Silva